Vi-te a ir para debaixo da terra

Vi-te a ir para debaixo da terra

No sábado, dia 06 de Novembro de 2021 vi o meu tio a ser lançado ao fundo da terra. O meu tio a quem nunca chamei tio, tratava-o por Vitinha.

Trato-o por Vitinha. É o irmão mais novo do meu pai. É o meu tio hippie, assim o designei quando, numa fotografia de casamento dos meus pais, surge-se-lhe a figura de cabelo escorrido quase até à cintura, ano 1975.

Acordei mais cedo do que devia, com tristeza e mágoa. Iriamos até ao Seixal, a um lugar onde existem campas espalhadas, tão próximas de si que me parece que os mortos por lá possam comunicar. Talvez seja por isso que as aproximam, para lhes garantirem companhia.

No carro fomos quatro, como quando era miúda: o meu pai, a minha mãe, eu e a minha irmã, com a diferença de que neste dia fui eu quem conduziu.

Passámos a ponte e pontuámos o caminho com uma ou outra conversa que depressa se dissipou, ganhámos conta de que o silencio seria a melhor companhia, numa tentativa de nos permitir atingir a disposição individual para o que iriamos ver.

O Vitinha não era católico, não houve missa, mas no cemitério juntámo-nos e, tentando reunir as vozes de todos numa só, lançamos o Pai Nosso e a Avé Maria a quem nos queria ouvir. Deveríamos tê-lo feito em uníssono, mas a minha voz embargou e a minha reza fez-se ouvir somente para dentro.

As lágrimas elegeram o trajecto e para além de, em abundância, escorrerem olhos fora, também surgiram interiormente e ocuparam o espaço na garganta por onde deveriam ter saído orações. Senti-me com fé, algo que se tem afastado de mim nos últimos anos e corrigi o meu pai quando disse ‘adeus’ ao seu irmão, substituindo a palavra por um ‘até um dia’.

Tremia de inquietação, simulando uma firmeza exterior para amparar o meu pai e para amparar a minha mãe que também amparava o meu pai, juntamente com a minha irmã.

– <Está tudo ao contrário> dizia o meu pai. <Não é o mais novo quem deve ir primeiro>.

Foi uma manhã inteira num luto. Levei a camisola preta e fazia frio, muito frio. Vi gentes que não via há muito e apercebi-me que as saudades fazem finca pé em circunstâncias que não contamos.

O Vitinha foi para dentro de um buraco no chão e alguns aproximaram-se para pegar num pedaço de terra para lá o lançar. Eu não consegui, temi que uma vertigem me empurrasse lá para dentro.

“We therefore commit this body to the ground, earth to earth, ashes to ashes, dust to dust; in sure and certain hope of the Resurrection to eternal life.”

Deu-se o regresso a Cascais, que foi mais curto, sendo o mesmo trajecto percorreu-se rapidamente, como sucede em todos os regressos.

Chegando a casa obriguei-me, no meu exterior, a fazer-me ver aos olhos da restante família de forma menos ausente, porque o ser mãe implica ajustes às emoções.

Arranjei-me à pressa, trocando a camisola preta por uma branca, para ir ver o torneio de ténis do meu filho mais novo. A tristeza corrói e é difícil de ultrapassar, são as dores de coração que mais mossa causam. Fechei os olhos por segundos, adaptei o estado de alma por umas horas e fui mostrar felicidade ao ver o meu filho jogar. Não como habitualmente mostro, mas o suficiente para que ele percebesse que eu estava ali, naquele momento eu estava ali para ele.

Voltando a casa, ajustei-me de novo e vesti a camisola azul. Tínhamos comprado bilhetes, já há algum tempo, para ir ao Nimas ver “A Metamorfose dos Pássaros”. Não tivesse já os bilhetes e não teria ido.

Mas Deus escreve direito por linhas tortas, é o que se diz, e ao longo de toda a emissão fui percebendo que ter ido assistir aquele filme fez todo o sentido. Senti-me sozinha ainda que rodeada de pessoas e vi o filme sem pestanejar, imóvel, a escutar as palavras e os sons e atenta às imagens.

Falou-se no ofício da solidão e no tempo e na vida e nas árvores e nos pássaros e na família e no amor e na perda, numa perspectiva lógica e de aceitação. Sem que nada tivesse sido planeado fui enterrar o Vitinha no mesmo dia em que assisti a um desembrulhar de uma narrativa audiovisual que me deu serenidade.

A vida não nos dá certezas, dá-nos uma que é o nosso fim na terra, mas estou em crer que hoje já o Vitinha está no céu, com os meus avós, a beber uma ginginha e a fumar uns quantos cigarros.

Está longe, se considerar a distância física ou geográfica, mas está perto pois o meu coração é imenso o suficiente para estar compartimentado a fim de caberem todos os que amo.

Este foi um dia metamorfoseado, iniciou na tristeza, passou pela felicidade e terminou em serenidade.

Cheguei a casa e disse aos meus filhos que os amava na mesma quantidade de grãos de areia, de folhas e de água existentes no planeta; que os amava na mesma quantidade de poeiras presentes no universo e que seria para eles sempre uma mãe árvore, com raízes fortes e com braços para os abraçar em todas as ocasiões que precisassem ou que eu precisasse.

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